terça-feira, agosto 07, 2012

Vitorino, o Emigrante



"vai devagar, emigrante"
Verão de 2007. 

Brota um dia de sol abrasador na verde Freamunde, e o jovem Vitorino vai ao café do costume ter com os amigos do costume, montado na Casal-Boss do costume.

Um dia normal para o moço, que colocara cuidadosamente o capacete amarelo do Pai na cabeça, de forma a não atrapalhar a acre sensação de paz transmitida pelo SG Ventil pendurado no canto da boca. 

Lá vai Vitorino, filho da terra, estimado por todos, transmitindo carradas de monóxido de carbono para a atmosfera. 


Lá vai Vitorino, inimigo público número um da camada de ozono, cumprimentando todos à sua passagem. 

O Acácio da frutaria, que acena carinhosamente. 
O Sr. Fialho da drogaria, que lhe cospe impropérios derivados da falta de paciência para com o infernal chinfrim vomitado pelo escape da motorizada. 
O Macedo da sala de chuto, que lhe endereça um salutar e bonacheirão "Tudo de bom!" de bochecha rosada. 

Vitorino chega ao café, coloca cuidadosamente uma viscosa bisga no canto do passeio e estaciona a Casal-Boss em cima dos caixotes de fruta. 
"É mesmo à Vitorino", exclamam sorridentes (e babados) os convivas que vegetam à porta do estabelecimento, sinceros admiradores da técnica apurada na arte de endereçar uma bela e consistente bisga enquanto se mantém simultâneamente um SG Ventil repousando nos lábios. 

Vitorino, o orgulho de Freamunde, é abraçado por todos e cumprimentado com os mais doces impropérios (e simpáticas referências à idoneidade de sua Mãe), sinal do mais belo e sincero male-bonding. 

Nisto, o Hino da Alegria enche o estabelecimento - em versão midi. 

É o alcatel do Vitorino, que toca impaciente. O jovem saca da pequena bolsinha preta CK pendurada ao cinto e leva o aparelho à boca. 
Segue-se um alegre porém digno "Atão, caralho?" 

Mas cedo se dissolve o ar casual de Vitorino. 
O sobrolho franze-se em tom de atenção redobrada. 
Adopta um semblante sério, profissional. 

Algo se passa. 

Os convivas em seu redor ignoram-no, viram a sua atenção para o novo videoclip da Ana Malhoa, que agracia os ecrãs da TV do café, obra e graça do Made in Portugal.
Vitorino retorque à chamada telefónica em staccato de tom afirmativo e expectante. 
- "tá bem, caralho", são as últimas palavras docemente proferidas pelo jovem antes de voltar a guardar o telemóvel na sua bolsinha de cinto Louis Vuitton. 

Sem expressão na ruborizada face, Vitorino caminha em direcção ao inerte grupo ainda fixado nos atributos da filha de José Malhoa. 
- "Bou pró caralho mais belho", afirma com a costumeira suplesse. 

O inesperado anúncio cai em saco roto, dado o fascínio do bando com as saltitantes insígnias da jovem artista de variedades na TV. 

- "Bou pró caralho mais belho!!!!!!", vocifera novamente Vitorino na tentativa de chamar a atenção da horde. 

Faz-se silêncio. Aliás, a TV estivera em mute todo este tempo. 

- "Para onde, caralho?", indaga expectante o mais anafadito do grupo, um senhor de meia idade de t-shirt branca com a inscrição "Freamunde Quase Capital do Móvel". 

- "Sei lá. O gajo disse Roma. Onde é essa merda, caralho?", questiona gentilmente o jovem, ainda semi-abananado com a notícia. 


"Io sono spettacolare"
Instala-se a confusão. Cada cabeça, sua sentença. 

Porém, a conclusão é quase unânime, e solenemente transmitida pelo Zé Coxo, jovem trintão de boné JCA ofertado pelo Zé Mota no final de um inesquecível Paços 1 - Ovarense 1 em 2004. 
- "Oube lá, Bitorino...essa merda é no estrángeiro." 

A notícia atinge o mancebo como uma carícia matrimonial do Paco Bandeira: 
- "Eu? No estrángeiro? Mas a única bez que fui ao estrángeiro foi quando fui jogar com o Freamunde à Lixa", asseverou um Vitorino confuso com a geografia nacional. 

- "Ouvi dizer que no estrángeiro as pessoas têm 3 metros de altura e cabelo verde", afirmou cauteloso o senhor anafado. 

Perante o ar cada vez mais assustado de Vitorino, o tipo mais magrinho do grupo - conhecido por ser o habitante de Freamunde com a maior colecção de postais do Bozinoski de férias - pôs água na fervura. Eis Quim Cowboy, boçal e roufenho: 
- "Caro amigo, excelentíssimo colega de viagem na sinuosa auto-pista da vida. Peço mil perdões por interromper esta salutar tertúlia de cariz geográfico, porém penso ter informações relativamente ao paradeiro de tal metrópole. Assevero-o de forma absolutamente humilde e despretensiosa, dado que a máxima socrática "só sei que nada sei" se mantém curiosamente actual. Todavia, creio que vos referis à Pátria de Vittorio Emanuelle II." 

O silêncio torna-se ensurdecedor, apenas quebrado pelos súbitos urros do confuso bando. Zé Coxo enrola-se em posição fetal, agarrado à cabeça. Toni Viagra esmaga cadeiras na parede, qual incrível Hulk tomado de fúria. Dois dos restante convivas berram desesperados, enquanto estilhaçam garrafas de RC Cola na testa. 

Contudo, Vitorino fita Quim Cowboy de olhos arregalados e tom sereno, exortando-o afectuosamente a desenvolver o tema abordado: 
- "Oube lá, queres levar um testo na fronha? Fala português, caralho." 

Quim Cowboy ajeita nervoso o chouriço que guarda no bolso da camisa Fabio Lucci, beija sofregamente o cromo de Pesaresi que traz sempre consigo na carteira, e solta um ansioso "Itália". 

- "Ô?", indaga sagazmente Vitorino. "A cena das pizzas?" 

- "Certamente, camarada. A Itália, oficialmente denomeada República Italiana, é uma república parlamentar unitária localizada no centro-sul da Europa. Ao norte, faz fronteira com FrançaSuíçaÁustria e Eslovénia ao longo dos Alpes. Ao sul.." 

A grosseira exposição de Quim Cowboy é felizmente interrompida por uma garrafa de Snappy que encontra ruidosamente a parte de trás do seu crâneo. 

Vitorino dirige-se calmamente para a saída, enrolando um pensativo elástico entre os dedos, de olhar fixo no chão. A sua vida está prestes a mudar. 
O jovem cantarola entredentes as primeiras estrofes da melodia "Sonhos de Menino", de Tony Carreira. 

De semblante sonhador, ergue suavemente o queixo e balbucia com elegância: 
"Sou um emigrante, caralho." 

Cinco Verões volvidos, Vitorino está de retorno à casa de partida. 
Roma ficou para trás, e os sonhos adiados. Na caçadeira futebolística carrega agora as memórias de tiros disparados na prestigiosa Liga dos Campeões da UEFA, carrinhos mal temporizados em San Siro, passes transviados no Delle Alpi e um olhar crítico in loco à crise da dívida grega. 
Pelo meio, um "buenos dias Matosinhos" com os "aviões lá 'trás" e a indignidade do clube detentor de seu passe ter pago 270,000 € para se livrar dele por uma época. 

Verão de 2012. 

Brota um dia de sol abrasador na verde Freamunde, e o jovem Vitorino vai ao café do costume ter com os amigos do costume, montado na Casal-Boss do costume. 
Um dia normal para o moço, que coloca cuidadosamente o capacete amarelo do Pai na cabeça, de forma a não atrapalhar a acre sensação de paz transmitida pelo SG Ventil pendurado no canto da boca, e sussurra sorridente: 

"Estou de volta, caralho." 

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